Fazendas da região do Paraíba retomam produção do grão, interrompida há quase um século, de olho no potencial turístico
Depois de quase um século, a região do Vale do Café está voltando a produzir… café! E do tipo especial, que exige uma cultura artesanal, adotada por cinco fazendas da região, quatro delas centenárias. Maior produtor mundial da commodity na virada do século XIX para o XX, o Vale do Paraíba fluminense — que abrange 14 municípios — está reintroduzindo os cafezais, em um projeto apoiado pelo Sebrae.
Os pés foram plantados no ano passado e, para surpresa de todos, uma parte deles acaba de dar uma minissafra. Na Fazenda Florença, de 1852, em Conservatória, totalmente voltada para o turismo, são agora 23 mil pés de café em cinco hectares. E oito sacas do produto, com 640 quilos, foram colhidas nos últimos meses. O aroma do cafezinho invade a propriedade:
— As pessoas vinham conhecer a fazenda e perguntavam: “Cadê o café? Não vou ver um pé de café?” — conta Paulo Roberto dos Santos, dono da Florença, enquanto coa um café arábica próprio de sabor frutado, que mistura grãos de oito tipos, numa cafeteria que montou em meio ao cafezal. — A fazenda teve uma das maiores produções de café da região. Perdeu essa cultura na década de 1920, quando houve estímulo político para eliminar os cafezais (época em que a oferta passou a exceder a procura pelo grão), e a região se tornou produtora de leite. Eu tinha um sonho de fazer esse resgate histórico, que tem a ver também com aromas e sabores.
Há funcionário hoje no cafezal que, mesmo nascido e criado nas fazendas da região, nunca tinha visto um pé de café na vida. Na grande safra, esperada para o ano que vem, estão previstas 18 toneladas na Florença. Por ser um café especial, a produção não deve ser extensa. Em uma fazenda que produz café convencional, chega-se a ter mais de mil hectares plantados.
BISCOITOS DE CAFÉ
A viagem ao passado inclui delícias como bolos e biscoitinhos de café, servidos também na Fazenda da Taquara, de 1830, em Barra do Piraí. A propriedade é comandada pelo tetraneto de seu fundador, o comendador João Pereira da Silva. Marcelo Streva é quem está à frente da plantação de cerca de dez mil mudas.
A Taquara é um caso raro de fazenda do Vale do Paraíba que insistiu com a produção de café ao longo do século XX. Nos anos de 1970, o pai de Marcelo retomou o cafezal, chegando a ter 150 mil pés. No fim dos anos 1990, porém, enfrentou uma crise, agravada por um incêndio que lambeu toda a lavoura. Em 2015, Marcelo tentou entrar no ramo do café orgânico, mas a iniciativa não vingou.
Agora, com apoio do programa do Sebrae — chamado de “Vocações regionais da cafeicultura fluminense” —, os pés de café já florescem. Para isso, projetos personalizados para cada fazenda foram desenvolvido pelo professor Flavio Borem, degustador e especialista em qualidade do café do Departamento de Engenharia da Universidade Federal de Lavras (MG).
Vista do cafezal da Fazenda Alliança com a sede ao fundo: projeto do Sebrae volta a escrever uma história que parecia já ter tido ponto final no Vale do Café – Custódio Coimbra / Agência O Globo
A ideia é que o investimento seja pago, principalmente, com o incremento do turismo. Os fazendeiros já discutem a criação da Rota Imperial do Café. Uma forma de voltar a escrever uma história que parecia já ter tido um ponto final.
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— O auge do café na região foi em 1850. Há um registro de quando Dom Pedro II vem a Barra do Piraí e encontra meu tetravô. A fazenda produzia dez mil arroubas de café (ou 150 toneladas). E chegou a ter 220 escravos — diz Marcelo Streva.
Ele explica a decadência do negócio na região:
— O café da virada do século XIX era velho, o solo estava desgastado e não havia mais o trabalho escravo. No começo do XX, as pessoas já tinham uma outra visão e queriam virar a página da escravidão, partindo para outras culturas.
PREOCUPAÇÃO ECOLÓGICA
O projeto promove soluções ecologicamente corretas para o cultivo, incluindo o plantio de mudas da Mata Atlântica, algo oposto ao que foi feito no passado, com a devastação da floresta. Em Barra do Piraí, a Fazenda Alliança, de 1850, decidiu-se pelo café especial e orgânico. A propriedade é das poucas produtivas da região. Tem uma horta de orgânicos, vendidos para consumidores no Rio, e uma produção de leite de búfala. A dona, Josefina Durini, já colheu uma minissafra dos seis mil pés de café, e aguarda uma grande para daqui a dois anos.
— Por enquanto, a produção é para ajudar o turismo. Já tenho várias visitas marcadas para conhecer o plantio de café — conta a fazendeira, há 11 anos na Alliança.
No século XIX, o café da propriedade foi premiado mais de uma vez, e até internacionalmente, pela sua qualidade. Josefina quer resgatar esse fio esquecido do passado:
— A tradição continua!
O trabalho no cafezal exige olhar clínico. A colheita é toda feita à mão, de grão em grão: só os frutos maduros são retirados dos pés, plantados sob a sombra de árvores da Mata Atlântica. Os frutos verdes ficam para ser colhidos posteriormente, fazendo com que o processo todo leve meses. Após fermentação natural, há uma seleção criteriosa, por tamanho: apenas grãos iguais são torrados juntos. Tanta minúcia preserva o sabor que vai para a xícara de quem visita o vale com o nome da segunda bebida mais consumida no mundo (só atrás da água).
PREÇO DE OURO NO MERCADO
A iniciativa do Sebrae no Vale do Café ainda inclui a Fazenda União, de 1836, em Rio das Flores, e o Hotel Fazenda St. Robert, em Piraí. O estado também registra cultivo de café nas regiões Serrana e Noroeste. Para incentivar essa cultura, nos dias 9 e 10 de outubro haverá, na Fazenda Florença, a final do primeiro Concurso de Qualidade dos Cafés do Estado, do Sebrae. Hoje, a grande produção do Brasil — maior produtor e exportador de café do mundo, com 33% do mercado mundial — está no Sul de Minas.
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Em relação aos cafés especiais, o Brasil compete hoje com a Colômbia. A safra brasileira do ano passado foi de 9,5 milhões de sacas, ou 665 mil toneladas. Vanúsia Nogueira, diretora executiva da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA), explica que um exemplar do tipo custa, em média, 50% a mais que um café comercial. Atualmente, o preço médio da saca é de R$ 430, enquanto no caso do especial é de R$ 700. Mas há cafés avaliados em milhares de reais: um café de Patrocínio, em Minas, chegou a ser vendido a R$ 55,5 mil a saca.
— Um café especial se bebe sem açúcar; não precisa ser adoçado para disfarçar defeitos — explica Vanúsia. — O café que mistura todos os grãos amarga e pode ter cheiro de remédio. O café especial tem só as frutinhas doces. Tem aromas de floral, de especiarias, frutados, amendoados, achocolatados e cítricos.
Flavio Borem, da Universidade de Lavras, diz que os especiais recebem nota de 80 a 100, conferida por degustadores profissionais. E diz que, pelo cuidado empregado nas fazendas do Vale, os cafés de lá passarão facilmente na prova.
Fonte: O Globo – Rio
https://oglobo.globo.com/rio/vale-do-cafe-resgata-sua-historia-com-aromas-sabores-especiais-23031493