Relações discriminatórias no ensino geram uma série de dificuldades na permanência e desempenho dos negros na escola e no ensino superior.Por Letícia Serafim

Nos dias 25 e 26 de abril, o Supremo Tribunal Federal decidiu por unanimidade pela constitucionalidade da adoção das cotas raciais para o ingresso nas universidades brasileiras. A decisão é uma vitória histórica para os movimentos negros e sociais que vêm lutando para garantir a igualdade de direitos da população negra e o fim do racismo no Brasil. Apesar desta vitória, a discussão em torno da adoção de cotas pelas universidades sempre gerou resistência por parte da população, especialmente de setores da elite conservadora e da mídia hegemônica. O discurso dos que se opõem às cotas raciais baseia-se desde argumentos sobre a meritocracia do ingresso – que afirma que todos têm acesso livre à educação, logo cabe ao indivíduo se dedicar aos estudos para merecer o ingresso no ensino superior – até argumentações sobre o critério de seleção que deveria levar em conta fatores sociais e econômicos e não raciais. Estes discursos desconsideram um problema chave para a discussão sobre as cotas, que é a existência do racismo e de relações discriminatórias em todas as instituições sociais, em especial dentro do sistema de ensino, que gera uma série de dificuldades na permanência e desempenho dos negros na escola desde o ensino fundamental até o superior. O resultado é um número bastante reduzido de negros que chegam à universidade, cerca de 10% da população universitária do país. A resistência às cotas para negros tem a ver com a maneira como o brasileiro encara a questão racial, silenciando o racismo através do mito da democracia racial e da “cordialidade” do povo. Em seu livro “Raça e Gênero no sistema de ensino”, Ricardo Henriques afirma que “essa naturalização da desigualdade deriva de origens históricas e institucionais, entre outras coisas, ligadas à escravidão e sua abolição tardia, passiva e paternalista”. Esta forma de tratar a questão esconde uma estratégia maniqueísta que tem como objetivo perpetuar relações de desigualdade que garantem privilégios para alguns em detrimento de outros.

Dois Brasis

Podemos justificar a importância da adoção das cotas raciais utilizando os dados analisados pelo economista Marcelo Paixão, em 2005, onde afirma que se dividíssemos o país em dois, um só formado pela população branca, e outro só com a população negra (pardos e pretos de acordo com denominações do IBGE), e se analisássemos o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) desses dois “países”, o “Brasil branco” estaria situado na 47ª posição em um ranking mundial. Já o “Brasil negro” ocuparia a 92ª posição. Esta constatação indica que a questão da desigualdade econômica e social no país está intimamente ligada à questão racial. Para além da questão social e econômica, que se reflete nas condições de vida, oportunidades de acesso à educação, saúde, trabalho e cultura, a população negra depara-se com outro fator que os colocam em situação de desvantagem em relação aos brancos: o racismo. De fato, o Brasil não viveu um apartheid como a África do Sul, onde o convívio e o acesso aos mesmos direitos dos brancos era negado por lei aos negros. O que temos é um apartheid dissimulado, que limita com cercas invisíveis os espaços em que é conveniente ao negro circular e as relações sociais que podem estabelecer. As práticas de discriminação racial estão presentes nas mais corriqueiras situações, desde a indicação do elevador de serviço, as piadas de desvalorização da estética negra, ditados racistas como “negro de alma branca”, até os mecanismos que dificultam o acesso dos negros às universidades e, consequentemente, às mesmas profissões de prestígio e ao mesmo status social que os brancos.

“O ‘Brasil branco’ estaria
situado na 47ª posição em um
ranking
mundial. Já o ‘Brasil

negro’ ocuparia a 92ª posição”

Desigualdades na educação

Nas últimas décadas, evidencia-se no país a elevação da escolaridade média da população, a redução na taxa de analfabetismo e o aumento do número de matrículas. Porém, esses avanços não se traduzem em qualidade do ensino, nem em redução das diferenças na educação entre brancos e negros. Ricardo Henriques aponta que em 1999 o número de brancos com curso superior completo (15 anos ou mais de estudo) superava em 5 vezes o de negros. A escolaridade média de um jovem negro com 25 anos de idade em 1999 girava em torno de 6,1 anos. Já um jovem branco da mesma idade tinha cerca de 8,4 anos de estudo. Essa diferença de 2,3 anos de estudo é bastante significativa se considerarmos que a escolaridade média de um adulto é de 6 anos. E mais assustador é que apesar de a escolaridade média entre brancos e negros ter evoluído ao longo do século XX, a diferença de 2,3 anos de estudo entre jovens brancos e negros de 25 anos de idade é praticamente a mesma observada entre os pais e avós desses jovens. Ou seja, apesar dos avanços na educação, apresenta-se um quadro de desigualdade constante ao longo do século XX entre brancos e negros. No domingo 13 de maio, O Globo apresentou em matéria de capa as consequências dos preconceitos múltiplos que colocam negros e pardos ocupando apenas 13% das profissões de maior prestígio, como juízes, médicos e engenheiros, e quando ocupam os mesmos cargos ganham cerca de 14% a menos do que os colegas brancos. Mesmo nos trabalhos de pouca qualificação, os salários dos brancos superam os dos negros em 55%. Como a discriminação tem caráter acumulativo, as mulheres negras ocupam as piores colocações no mercado de trabalho, recebendo apenas 39% do que recebem os homens brancos. A desigualdade na distribuição da educação impacta decisivamente na desigualdade da distribuição de renda do país. É fundamental que continue havendo pressão social para ampliação de universidades com sistema de cotas, assim como de projetos para a manutenção de estudantes cotistas. Atuar com mecanismos de reparação do déficit histórico com a população negra no sistema de ensino significa não só atuar para a superação do racismo, mas também contribuir para a distribuição de renda e para o desenvolvimento de um país justo e igualitário.


  • Letícia é negra, jornalista e estudante de pedagogia
    .

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here