O tema do brincar na clínica psicanalítica é algo em que, em muitos casos, ainda acreditamos não ser de tão relevante importância. Pensa-se que a criança é levada ao psicólogo ou ao psicanalista com o objetivo de falar de seus problemas e não para brincar.
Não devemos ignorar que a criança, considerando-se como tal o sujeito até os 10 ou 11 anos, ainda está em fase de construção de sua subjetividade, da forma como lê e compreende o mundo ao seu redor. E é justamente nesta fase da existência em que a criança não consegue, ainda, simbolizar coisas que são imateriais através das palavras, como por exemplo, os sentimentos e emoções vivenciados no seu dia-a-dia.

Todos os pais sabem que é muito difícil conseguir que a criança fale o que está sentindo e os sintomas que está vivenciando quando está doente, seja um simples resfriado ou uma dor de barriga. Se para dores físicas que são concretas e localizadas as crianças apenas conseguem apontar e dizer “o dodói ta doendo aqui”, imagina como iram apontar para suas dores da alma?

Fato é que, mesmo não sendo capaz de simbolizar e dar significados aos seus sentimentos e suas dores morais, essas existem, e doem ainda mais do que nos adultos, pois esses sujeitos em formação ainda não possuem aprendizagens e repertórios de experiências, o suficiente, que os façam ressignificar os problemas e situações difíceis que vivenciam em família, ou em comunidade, tais como: brigas entre seus pais, separações, abusos sexuais, alcoolismo, violência urbana (assaltos e homicídios), morte de familiares, bullying escolar, doenças físicas que causam perda de mobilidade e doenças terminais que colocam a criança frente à perspectiva da morte.

Então muitos nos perguntariam: como podemos trabalhar na clínica psicanalítica com os sentimentos e emoções de crianças que não conseguem colocá-los em palavras?
Para a psicanálise o que importa não é o que é dito, mas o que se cala, o que existe por trás da linguagem. E sabemos que linguagem não é só os sons articulados que compõem as palavras de nosso português, mais também todo o tipo de expressão com significação, seja a expressão corpórea ou mesmo o comportamento expresso.

Dentro dessa visão, o brincar é uma forma de linguagem muito apropriada à fase da infância, pois é através do brincar que a criança nos diz de seus medos, de suas tristezas, de suas dores emocionais e conflitos existenciais.

Um exemplo que é muito esclarecedor é quanto ao brincar de casinha com uma família terapêutica (brinquedo terapêutico onde existem diversos bonecos que representam membros da família que são dispostos em uma casinha). Nessa brincadeira a criança revive os fatos que ocorrem em sua casa, nomeando os bonecos como papai, mamãe, irmão, etc. Brigas e situações difíceis, bem como os desejos da criança, são expressos na brincadeira com os bonecos. Muitas vezes através dessas brincadeiras nascem os caminhos que teremos que adotar na conduta terapêutica dessa criança/paciente.

Melanie Klein, a grande dama da psicanálise, discípula e dissidente de Sigmund Freud, se destacou pelo seu pioneirismo na clínica psicanalítica com crianças, adotando o brincar como a terapia infantil por excelência. É justamente esse grande ícone da psicanálise que nos legou a idéia de que o brincar, por si só, é terapêutico, por ser uma forma em que a criança ao expressar seus medos e seus receios, suas dores e aflições, consegue ressignificar esses conteúdos e transformar a sua forma de enxergar a realidade ao seu redor, com isso fortalecendo seu ego e tornando-se capaz de enfrentar as situações difíceis que são inevitáveis no percorrer dessa fase da vida. Isso repercutirá positivamente no futuro desse sujeito.

Dessa forma, os pais ao notarem uma mudança acentuada no comportamento de seus filhos, uma tendência ao isolamento, falta de vontade em fazer suas pequenas tarefas escolares, bem como o não querer ir à escola, a agressividade e o choro sem razões aparentes, devem procurar o auxílio de um psicólogo/psicanalista, a fim de que possam ser investigadas, através da ludoterapia (brincadeira terapêutica) as possíveis razões da mudança psicológica de seus filhos.

Não deixemos esses pequeninos sujeitos ao desamparo psicológico de suas dores morais, as que mais marcam e doem no coração humano.

Brincadeira é coisa séria!

Autor:
Dr. Charles José da Silva.
Psicólogo Clínico
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